Texto originalmente publicado no site do Centro para Pesquisa Política da Universidade das Nações Unidas (UNU-CPR). Acesse aqui detalhes sobre a UNU-CPR. Traduzido por Daniel Martins.
Com Lula presidente, Heaven Crawley reflete sobre o que o novo governo pode significar para os haitianos que vivem no Brasil, para quem o acesso a direitos e a oportunidades para integração continuam distantes
Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência do Brasil pelo terceiro mandato no dia 1º de janeiro, em cerimônia presidencial profundamente simbólica, designada para significar um distanciamento da postura adotada por Jair Bolsonaro, cujo mandato foi marcado pelo retrocesso nos direitos indígenas e uma expressiva retórica anti-imigração.
Emocionado, em seu discurso de vitória, Lula reafirmou seu compromisso em reconstruir o país e trabalhar pela igualdade racial e de gênero e alcançar desmatamento zero na floresta Amazônica.
São altas as expectativas do retorno de Lula, inclusive entre migrantes haitianos que chegaram ao Brasil após o grande terremoto que devastou o país em 2010. Muitos ainda lutam para assegurar o acesso à justiça em um país construído na escravização de povos indígenas e de milhões de africanos.
A herança escravista
O Brasil tem uma história com a migração extensa e complexa —que continua a afetar pessoas com origens afro-diaspóricas. Estima-se que 5,5 milhões de escravizados foram trazidos para o Brasil para trabalhar na economia do plantio açucareiro — e mesmo quando a escravidão foi por fim abolida em 1888, muito depois do que qualquer outro país nas Américas — a vida de afrobrasileiros não mudou expressivamente.
Muitos escravizados libertos entraram em acordos informais com seus antigos donos, trocando trabalho por comida e abrigo.
As elites brancas brasileiras, preocupadas com a possibilidade de se tornarem uma minoria, também implementaram a política de branqueamento por meio do estímulo e favorecimento da imigração europeia, com objetivo de "limpar o sangue". Isso se justificou pela premissa de que o Brasil não prosperaria com uma população majoritariamente preta — herança que até hoje se perpetua por meio de estruturas e atitudes racistas profundas, prevalentes na sociedade brasileira contemporânea —; herança que se reflete em abusos de direitos humanos generalizados contra a população negra e no empobrecimento — em níveis que equivalem ao dobro quando comparados à população branca.
A migração haitiana no Brasil
O Haiti tem a sua história própria de escravidão. Após a conquista da independência e da abolição da escravidão, o Haiti foi duramente punido pela comunidade internacional e forçado a pagar débitos altamente dispendiosos à França, empurrando o país a um ciclo de endividamento que por mais de cem anos minou o desenvolvimento do país. Embora já tenha sido a mais rica das colônias nas Américas, o Haiti hoje é o país mais empobrecido no hemisfério ocidental, com mais da metade de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial.
O forte terremoto que acometeu o Haiti em janeiro de 2010 afastou do país a capacidade de lidar com os problemas sistêmicos enfrentados. Também implicou o deslocamento massivo de haitianos em busca de caminhos para alimentar a si e suas famílias. Apesar de antes a migração haitiana não ter acontecido em grandes números, a notícia sobre as oportunidades se espalhou, principalmente com os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e os jogos olímpicos de 2016.
Em 2012, como resposta ao aumento do número de pedidos de asilo, o governo brasileiro possibilitou aos que haitianos tivessem o status regularizado a partir de vistos humanitários.
Dados de 2020 dão conta de uma população haitiana estimada em 143.000 pessoas.
A experiência de migrantes haitianos
Vistos humanitários viabilizam oportunidades para que a migração ocorra de forma regular para quem não se enquadra para proteção conforme estipula a Convenção do Refugiado, embora a permanência no país permaneça inviável. Mesmo após uma década de expressivo fluxo migratório, a vida dos haitianos no Brasil se caracteriza por uma profunda ambivalência: se, por um lado, criou-se um sistema para atraí-los ao país, por outro, sua recepção é arbitrária e não planejada.
Primeiro, apesar do direito à vida familiar estar consagrada pela Declaração Universal de Direitos Humanos, muitos haitianos não estão aptos a fazer os arranjos necessários para reunir suas famílias no Brasil. A reunião familiar é difícil no Brasil, mesmo para quem tenha status de refugiado, e vistos humanitários não trazem as mesmas proteções e recursos governamentais. Muitos haitianos têm dificuldade de garantir a documentação necessária para a reunião familiar.
Ainda, lidam com desafios associados à viagem para e desde o Haiti, principalmente em decorrência da falta de voos diretos desde a pandemia da Covid-19 e da exigência de vistos para trânsito. Esse problema se agravou pela rápida deterioração da segurança no Haiti que se seguiu após o assassinato do presidente Moïse em julho de 2021. Sem ter como proteger suas famílias no Haiti, ou mesmo contribuir com as necessidades mais imediatas, haitianos no Brasil se sentem desamparados e desesperançosos. Também compartilham da frustação para com a falta de mecanismos que os apoie, incluindo mesmo a provisão de documentação.
Em segundo lugar, as oportunidades econômicas que muitos haitianos acreditaram estar acessíveis a eles no Brasil se provaram elusivas. Há evidências que sobreviventes haitianos do terremoto foram forçados a suportar condições de trabalho análogas à escravidão moderna enquanto construíam estádios sob custos multimilionários para a Copa do Mundo de 2014, assim como durante o trabalho de construção para as Olimpíadas. Como se não bastasse, migrantes qualificados estão frequentemente impossibilitados de terem reconhecidas suas habilidades e qualificações em decorrência do custo e da complexidade do processo de autenticação no Brasil.
Em 2014, quando o Brasil entrou em recessão econômica, muitos haitianos se viram sem emprego e com menos caminhos para a obtenção do status de permanência legal.
Por fim, as respostas à imigração haitiana têm sido bastante racializadas. Sem parentes e amigos, a maioria dos migrantes não-brancos no Brasil vivem nos subúrbios, periferias e favelas. Lidam com dificuldade extrema de garantir trabalhos regulares em decorrência da xenofobia, do racismo e do preconceito de classe. Haitianos e outros migrantes negros também têm sido vítimas de violência física.
O que vem adiante para a comunidade haitiana no Brasil?
Lula herdou um país profundamente desigual, assolado pela pandemia da Covid-19 e politicamente polarizado: ele venceu a eleição por menos de 2% dos votos e, como demonstram os ataques a Brasília , os opositores continuam a questionar a vitória de Lula.
Apesar de ter tirado milhões de pessoas da pobreza nas últimas décadas, o Brasil ainda lida com uma enorme desigualdade entre os mais ricos e o restante da população do país, incluindo migrantes e brasileiros negros.
Mas é enorme o potencial do Brasil e o retorno de Lula marca uma guinada potencialmente importante. O país já começou a reverter seu isolamento no cenário internacional, anunciando seu retorno ao Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, um sinal de Lula sobre suas intenções em relação às questões pertinentes aos migrantes no Brasil.
Ele também pode ressignificar narrativas sobre a migração — reorientando as narrativas anti-imigração que dominaram a presidência de Bolsonaro e minaram os direitos de migrantes haitianos —, e promovendo o potencial migratório como força motriz para o desenvolvimento.
Lula precisa avançar no encaminhamento de questões específicas relacionadas à comunidade haitiana. Apesar de o terremoto passar de uma década, ela continua sem os meios necessários para garantir direitos e oportunidades para a integração no Brasil.
Imediatamente após o terremoto em 2010, o então presidente Lula visitou o Haiti e disse que os haitianos poderiam vir ao Brasil — e que seriam recebidos de braços abertos.
Chegou o momento de traduzir essas boas-vindas em ação, pautando a urgência da reunião familiar no contexto da crescente insegurança e precariedade econômica no Haiti.
Por fim, Lula, que se identifica como negro, comprometeu-se em combater as desigualdades raciais estruturais que moldam a vida de comunidades indígenas, negras e afro-brasileiras. Sua decisão de nomear a Anielle Franco, irmã de Marielle Franco, como nova ministra da Igualdade Racial é um sinal de sua intenção de reconstruir as leis e políticas antirracistas desmanteladas nos últimos anos.
Dada a história do Brasil, essa pode se provar a mais importante mudança.